22/06/2023
Da Defensoria Pública do Ceará
Com 103% de sua renda comprometida em dois bancos, um funcionário público procurou a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) com o intuito de uma saída: renegociar a dívida e salvar sua situação financeira. Há dois meses sem receber dinheiro, ele contou com a ajuda de familiares para sobreviver.
O caso não é distante da vida de milhares de superendividados no Brasil, em cenário que combina juros altos, publicidade abusiva na oferta de crédito e falta de educação financeira.
Desde julho de 2021, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) ganhou uma série de normas que atendem às questões relacionadas ao superendividamento. Com isso, ficou reconhecido que a concessão do crédito não pode levar ao comprometimento do “mínimo existencial” do cidadão. Mas esta legislação segue sem definição correta de qual seria este mínimo.
O servidor público já possuía alguns empréstimos na Caixa Econômica Federal que comprometiam 4% de sua renda mensal. Em 2022, contraiu uma nova quantia no Bradesco. Foram mais 3 consignados e a situação comprometeu mais de 100% de seu salário.
De acordo com sua companheira, eles passaram 2 meses sem receber nenhuma quantia em dinheiro, sendo sustentados por familiares. “Nós não tínhamos como pagar as nossas despesas essenciais, graças a Deus a gente não mora de aluguel, porque senão seria pior ainda. Foi constrangedor ver nossas famílias assumindo nossas despesas”, desabafa.
PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL
A construção da defesa do caso foi baseada no artigo 54-D do CDC, que caracteriza como responsabilidade do fornecedor de crédito avaliar se as condições da concessão são viáveis para que o consumidor tenha preservado seu “mínimo existencial”. “Se foi concedido um crédito além da capacidade de reembolso do consumidor, ele tem direito a dilação desse prazo, a redução dos juros e, talvez, até mesmo a uma indenização por dano moral por determinação expressa do artigo 54-D do CDC”, pontua a defensora Amélia Rocha, supervisora do Núcleo de Defesa do Consumidor da DPU (Nudecon).
Atualmente, o servidor recebe uma quantia referente a 20% de seu salário, ajuste conquistado após uma decisão de primeiro grau que reduziu duas parcelas dos empréstimos. Segundo o policial, ele tem interesse em quitar todas as suas dívidas e espera ansiosamente por isso. “Eu nunca fui mau pagador. Quero e vou pagar. Preciso honrar meu nome e meu caráter. Eu só não podia ficar sem nada. Eu estava ficando sem nada”, lamenta.
Amélia Rocha defende que esse debate deve ser de toda a sociedade, pois todo mundo conhece consumidores nesta situação. “A exclusão social de pessoas superendividadas não interessa a ninguém. Não interessa nem ao fornecedor e nem ao consumidor. Ao fornecedor porque vai reduzir o mercado e ao consumidor porque ele não vai nem ter como sobreviver”, discorre.
Conforme o levantamento feito pelo Serasa, em 2023 o número de superendividados bateu os recordes, só em janeiro o país registrou 70 milhões de pessoas endividadas, o que preocupa especialistas, pois configura um retrocesso em relação aos últimos 5 anos. “Existe uma infinidade de processos que tratam dessa questão de superendividamento e do abuso na concessão do crédito. O nosso assistido é apenas mais um que sofreu desse abuso de direito na concessão do crédito. Infelizmente, isso é uma prática corriqueira de várias instituições financeiras”, destaca a defensora Marly Anne Ojaime, defensora pública da Defensoria Cível de Fortaleza, que atuou no primeiro grau da ação.